(Foto de Rogério Simões
Museu de Messejana)
(Visitem este museu alentejano)
Memórias
Os acontecimentos que passo a recordar passaram-se entre os anos de 1950 e 1953, período durante o qual vivi na Quinta das Amendoeiras, situada nos arredores de Beja, cidade onde nasci em 1948.
I. - MEDOS
Olhava fixamente o tecto. Raios de sol penetravam por entre as telhas para trás e para a frente, num ritmo constante, ao som de uma melopeia...
“ó papão vai-te embora,
de cima desse telhado,
deixa dormir a menina
um soninho descansado “
Voltava a ouvir aquele som!
Voltava a ver os raios de sol: imensos pontinhos dourados que se enovelavam - tal como o fumo e as chamas volteiam na chaminé.
Fechava os olhos e a minha mãe, ou a minha avó, com muito cuidado iam-me deitar.
Numa cama situada num quarto, que na altura me parecia enorme, acordei. Pelo umbral passava uma ténue claridade. Era uma casa no monte, rústica, tipicamente alentejana, onde as portas interiores não existiam e eram geralmente substituídas por cortinas.
Acordei, provavelmente assustada, e o primeiro movimento foi debruçar-me da cama e espreitar para baixo - ao mesmo tempo que gritava chamando pela minha mãe!
Entretanto, a minha mãe chegou e, quando a vi no umbral, debrucei-me novamente na cama, espreitei para baixo, e nada vi!
E vi! Não tenho dúvida de que vi: o que se assemelhava talvez a uma tartaruga gigante escura que, muito lentamente, se escondeu debaixo da cama…
Elisabete Maria Sombreireiro Palma

Óleo sobre tela que ofereci ao meu marido, fazendo votos para que ele publique a sua poesia
Eu Tarik
Capítulo II
Mais tarde, comecei a reparar que ela quando passava sobre o que os humanos chamam tapete, arrastava várias vezes os pés no dito, olhava para mim e chamava-me lindo. Sim, eu comecei a fazer o mesmo, e ela ficava tão contente!
Um dia, lembro-me perfeitamente, fui com ela ao local onde trabalhava. Em vez de me colocar no chão, pôs-me em cima da secretária, e, fui acariciado, afagado, o meu “ego-cão” estava no auge com tanta admiração por parte dos amigos dela, que me descuidei, fiz um xixi, fiquei deveras atrapalhado!
Já crescidote, fui viajar com os meus donos. A minha dona disse-me que íamos visitar a terra onde a minha mãe nasceu. Entretanto passavam os dias a escavar a terra, nunca percebi muito bem porque o faziam, eu ficava na sombra do carro, preso, sim porque eu era um bocado traquinas, e, tive azar, não é que uma abelha me mordeu na bochecha! Sofri, e penso que foi desde esse dia que me tornei um bocado arisco, aprendi a rosnar, a mostrar o meu carácter um bocadito belicoso. Sim, porque a minha dona tinha que entender que eu era um cão especial, não um cão mariquinhas. Mas devo confessar-vos que fui sempre muito sensível à dor.
O tempo foi passando, fui crescendo. De repente, sem entender muito bem porque o meu dono deixou de vir a casa. A minha dona disse-me qualquer coisa, mas entendi que eram coisas de humanos.
Certa vez, fomos viajar numa casa, enorme, com rodas. Eu ficava muito amedrontado com o barulho dos outros carros que passavam por nós, mas lá me ia aguentando até que depois de algum tempo, chegamos a um sítio, que mais tarde vim a saber que se situava em Londres, onde senti que a minha dona estava muito aflita, agarrou-me a chorar e disse para eu não fazer barulho. Mas, de repente entraram uns homens que me queriam agarrar, o medo era tanto que fiz chichi, mas mesmo assim levaram-me, a minha dona chorava e eu pensava que nunca mais a via. Os ditos homens, depois de muito andarmos levaram-me para um sítio completamente estranho. Estava preso. Tinha um quarto com uma parte com grades que dava para um corredor, e um jardim mas este também com grades. Falavam comigo numa língua que eu não entendia, e cada dia me sentia mais infeliz. Até que apareceu a minha dona e me contou o que se estava a passar. Estava de facto preso, de quarentena, porque era proibido eu ter entrado em Inglaterra da maneira que o fizemos. A minha dona teve que me deixar ali naquele sítio pelo tempo que eles entenderam, depois despachar-me-iam de avião para Portugal. E assim aconteceu. Nunca me recompus totalmente desta viagem, então o avião foi um tormento, até há bem pouco tempo se me falavam em Inglês, eu uivava, foi para esquecer.
O meu dono voltou outra vez, e de vez em quando revia a minha família. Voltamos a passear no campo, perto da terra onde a minha mãe nasceu, ela ficava felicíssima, mas eu não, tudo me incomodava, passavas os dias debaixo da cama, só gostava de sair à noite.
Continua